R. Feynman, o amor e a morte
Por: Sónia Machado
Vagueava pela internet quando me deparei com este documento que achei verdadeiramente comovente, e que durante algum tempo prendeu totalmente a minha atenção e os meus pensamentos. Convido-vos a imaginar alguns cenários.
D'Arline,
I adore you, sweetheart.
I know how much you like to hear that - but I don't only write it because you like it - I write it because it makes me warm all over inside to write it to you.
It is such a terribly long time since I last wrote to you - almost two years but I know you'll excuse me because you understand how I am, stubborn and realistic; and I thought there was no sense to writing.
But now I know my darling wife that it is right to do what I have delayed in doing, and that I have done so much in the past. I want to tell you I love you. I want to love you. I always will love you.
I find it hard to understand in my mind what it means to love you after you are dead - but I still want to comfort and take care of you - and I want you to love me and care for me. I want to have problems to discuss with you - I want to do little projects with you. I never thought until just now that we can do that. What should we do. We started to learn to make clothes together - or learn Chinese - or getting a movie projector. Can't I do something now? No. I am alone without you and you were the "idea-woman" and general instigator of all our wild adventures.
(...)
And now it is clearly even more true - you can give me nothing now yet I love you so that you stand in my way of loving anyone else - but I want you to stand there. You, dead, are so much better than anyone else alive.
I know you will assure me that I am foolish and that you want me to have full happiness and don't want to be in my way. I'll bet you are surprised that I don't even have a girlfriend (except you, sweetheart) after two years. But you can't help it, darling, nor can I - I don't understand it, for I have met many girls and very nice ones and I don't want to remain alone - but in two or three meetings they all seem ashes. You only are left to me. You are real.
My darling wife, I do adore you.
I love my wife. My wife is dead.
Rich.
PS Please excuse my not mailing this - but I don't know your new address.
Assim escreveu o físico Richard Feynman, laureado com o Nobel em 1965, numa carta à sua mulher Arline, 488 dias após a morte desta.
A vivência de um amor desta natureza é algo com o qual nos conseguimos identificar, não é? Mas que natureza é esta? Que é "isto" que perdura assim pelo tempo e é, aparentemente, inigualável?
Refletir sobre este tema trouxe-me a memória de um familiar meu, que após ter perdido a sua mulher para a morte, perdeu simultaneamente o sentido da sua própria vida e desejava muito morrer também. Recordou-me também um amigo que ao falar-me da sua avó, em tempos, me dizia que esta não sabia viver após a morte do marido, e perguntava-me: "Como é que o mundo não para, quando o teu amor te morre?".
Parece que há um mundo que para, como aconteceu a R. Feynman. Como disse Pablo Neruda, os dias passam mas a vida não continua. Lá fora, o mundo externo continua a acontecer. Mas se acontece lá fora, de nós, o que se passa no lado de dentro? Onde estão os nossos limites, que definem de algum modo onde começamos e onde acabamos? Como podemos compreender que se continue a amar alguém que está morto?
Reparei que dificilmente se pensa sobre o amor sem se pensar também sobre a morte. Parece que todas as pessoas que amam têm medo de morrer, de uma ou de outra maneira, em última análise. Porque com a morte perde-se a continuidade, da vida, do amor, rasga-se abruptamente qualquer ilusão prévia de imortalidade e mergulha-se de olhos abertos numa existência condicionada pelos limites do tempo, e tantas vezes, alheia ao nosso controlo. Quer seja a morte física de alguém, quer seja a morte de um ideal, que resulte de uma ruptura relacional, ou profissional, as formas várias causam um ferimento em quem sofre essa perda, com menor ou maior severidade, que precisa de ser cuidado e de ser reparado. Eu estudei, especialmente quando trabalhei na área de oncologia, e conheço de modo geral, as fases do luto, tão bem descritas pela Dr.ª Kübler-Ross. Mas há uma parte fulcral do luto sobre a qual não ouvi falar, exceto entre os poetas, que é a parte vivencial da pessoa que está em luto. A descrição das fases do luto ajuda-nos a localizar o momento no qual a pessoa se encontra, mas não a ajuda a fazer o luto, e muitas pessoas não sabem como fazê-lo. Pensei, então, em rascunhar este texto na tentativa de trazer alguma compreensão a este fenómeno tão comum, tão frequente nas nossas vidas, e o qual sabemos manejar com tão pouca aptidão. Não é fácil, sabemos bem, e talvez seja algo até contra-intuitivo.
E.E. Cummings explica extraordinariamente o trabalho que tem que ser feito, num dos seus textos, ao falar sobre o que é a poesia. Usarei humildemente o seu discurso como metáfora para falar desse momento - o luto [ou a vida, se não vos confundir esta alusão] - em que a pessoa está entregue a si própria, e tem que viver e sentir por si mesma, de modo a poder transformá-lo em algo pensável e compreensível.
Diz ele que, muitas pessoas pensam ou crêem ou sabem que sentem - mas isto é pensar ou crer ou saber; não é sentir. E a poesia é sentir - não é saber nem crer nem pensar. Qualquer pessoa pode aprender a pensar ou a crer ou a saber, mas nenhum ser humano pode ser ensinado a sentir. Porquê? Porque quando tu pensas ou crês ou sabes, tu és uma imensidão de outras pessoas: mas no momento em que tu sentes, tu és ninguém-exceto-tu-mesma/o. Expressar ninguém-exceto-tu-mesma/o em palavras, significa trabalhar um pouco mais arduamente do que qualquer pessoa que não é um poeta pode imaginar.
Fazer o luto é fazer poesia, é preciso ser-se poeta para transformar a morte. E para que esta elaboração possa ocorrer, eu acho fundamental que se introduza no universo do nosso conhecimento geral uma componente do processo de luto, penso que omissa na literatura técnica, que nos pode ajudar a compreendê-lo melhor: a morte de si mesmo.
Entendo que quando os outros morrem, somos obrigados a morrer também, mas enquanto continuamos vivos, e sozinhos. O Sr. Feynman não negava a morte da sua mulher Arline, mas negava-se a aceitar um amor menor, e a viver consequentemente numa realidade que considerava de qualidade inferior. Por outras palavras, recusava-se a aceitar a sua própria morte. Uma morte que não é física, mas que é psicológica. Que é o cessar de uma realidade de vivências e de modos de ser, que existem na subjetividade de cada um e na relação com alguém em particular (a subjetividade partilhada), para além do substrato biológico que a sustenta; a realidade dos pensamentos e dos afetos de quem continua vivo. Esta perda implica, portanto, uma perda de parte da nossa identidade, a ruptura leva a que percamos a parte de nós que era com a outra pessoa, aquela que existia somente no conjunto que ambos formávamos, a obra criada na nossa relação. Por isso, R. Feynman adiava escrever a sua carta, primeiramente, o seu entendimento não dualista da existência, um elemento fundamental da sua identidade, confrontava-se agora com o facto de ter que comunicar com uma entidade não material, a sua amada, para mitigar a saudade e a solidão. Não fazia sentido. Depois, esse processo interior forçava-o a morrer para o seu amor - embora para aquele amor apenas - para que pudesse continuar a viver. Era uma dor incompreensível. Teria que recriar-se, que permitir-se renascer, de novo só, realizando continuamente a sua experiência de ser no mundo. Teria que olhar a fundo para a matéria da sua identidade, alguma da qual provavelmente permaneceu obscura, temporariamente, atribuir-lhe palavras e significado na sua consciência, e seguir concretizando com outros graus de maturidade a liberdade de ser ninguém-exceto-si-mesmo.
Aparentemente, somos desenhados de modo a que o amor pela nossa vida nos leve a vencer todas as mortes, até à última.
No entanto, quer seja a perda do objeto de amor, quer seja a perda de amor do objeto, toda a ruptura implica o processo de reparação e de adaptação a uma nova realidade. O espaço da sessão psicoterapêutica serve também para procurarmos, juntos, uma representação compreensível e consciente desses sentimentos, dessa luta e desse trabalho.